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Por Alessandro Rodrigues Rocha

Procuro dizer o que sinto
Sem pensar em que o sinto.
Procuro encostar as palavras à idéia
E não precisar dum corredor
Do pensamento para as palavras.

Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.
O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado
Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.

Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu,[…]

E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer como um homem,
Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.
E assim escrevo, ora bem ora mal,
Ora acertando com o que quero dizer ora errando,
Caindo aqui, levantando-me acolá,
Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso[1].

Essa metáfora da tinta que cobre o que antes era outra coisa é bem adequada à introdução de nossas discussões onde trataremos da afirmação da experiência como lugar onde ocorre a articulação entre o fruitivo e o político no ato da leitura.

Iluminados pelo poeta podemos compreender melhor como nossa capacidade de percepção da realidade recebe muitas “camadas de tinta”, ao longo da história. Essas camadas de tinta são as sucessivas epistemologias e suas peculiaridades hermenêuticas. Contudo, nesse momento queremos destacar a espessa camada de tinta colocada sobre nossa capacidade de percepção, a saber: o racionalismo moderno.

O racionalismo moderno modulou certa maneira de interpretar o discurso teológico, potencializando ou enfraquecendo certos temas da fé, bem como sua incidência pastoral e política. O racionalismo tem seus modos de ler e de intervir no mundo. O problema central do racionalismo, sobretudo em sua versão moderna, é sua expressão de uma racionalidade fechada e dualista.

Fechada porque reduz a tarefa de percepção da realidade a uma só dimensão da existência humana: a razão concebida como consciência e sede do ser. Dualista porque desintegra o ser humano numa dinâmica hierarquizante, onde a mente se sobrepõe, para dominar, às demais instâncias de nosso ser. Essa desintegração impede em última análise que nos realizemos como seres complexos. Podemos perceber esse trauma do racionalismo moderno na poesia de Cecília Meireles:

Ou Isto ou Aquilo

Ou se tem chuva e não se tem sol
ou se tem sol e não se tem chuva!

Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!

Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.

É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo em dois lugares!

Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro
Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo…
e vivo escolhendo o dia inteiro!

Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranqüilo.

Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.

Não obstante esse mal estar dualista esteja presente como uma fratura no ser, perspectivas mais holísticas se afirmam como possibilidades de uma experiência mais integradora com a realidade. A ascensão da razão moderna ao status de suficiência encontra em nosso tempo seu ocaso. Os postulados cartesianos que separaram res cogitans e res extensa (o cognitivo e o fruitivo) não dão conta mais das demandas tanto das ciências, quanto da economia e da política. Contudo, esse outro momento que estamos vivendo demanda uma nova teorização acerca das formas de conhecer, que possam por sua vez inspirar outras formas de ser-no-mundo.

Repensar o lugar da hermenêutica teológica na experiência de fé num contexto de superação do dualsimo racionalista consiste, entre outras coisas, na ascensão da vida como lugar teológico e, como espaço privilegiado para o discernimento político. Em suma, repensar a hermenêutica no contexto de superação dos limites racionalistas deve ser acompanhado de uma desconstrução do político que se organiza a partir de dinâmicas dualistas.

Encarar a tarefa da racionalidade nesses novos termos é descer ao chão concreto da existência e assumi-lo como o único lugar possível onde podemos viver e a partir de onde podemos perceber a realidade, não em perspectiva última e definitiva, mas tal como ela se nos revela e nós nos revelamos a ela. Esse difícil, mas necessário caminho do universal abstrato ao local concreto, nos lança à topografia onde se pode realizar uma racionalidade aberta e integradora: a vida. É exatamente nesse sentido que falamos de raciovitalismo.

“Submeter a razão ao teste da plasticidade do que é vivo[2]”. Nesta frase do sociólogo francês Michel Maffesoli está colocado a principal questão do raciovitalismo: aceitar a dinâmica da vida como constitutiva da razão humana. Do axioma “penso logo existo” à concepção vitalista “penso porque existo”. A existência precede todo axioma, e mais, é nela que eles são gerados, mesmo que depois se voltem contra ela tentando suprimir sua densidade e complexidade.

No exercício de “submeter a razão ao teste da plasticidade do que é vivo” surge uma racionalidade transpassada pela vida em todas as suas dimensões, uma racionalidade capaz de integrar intelecto, afeto, sensibilidade, intuição, em suma: o fruitivo e o político. Uma racionalidade aberta ao novo que é próprio da dinamicidade dos seres vivos. Fazendo um retorno à densidade da expressão “pensar”, M. Maffesoli reconduz a vida ao centro da atividade racional. Ele afirma:

Pensar, não esqueçamos, remete ao pensare latino: ao mesmo tempo “julgar” e “pesar”. Privilegiamos o “julgar”, com a perspectiva judicativa e normativa que conhecemos, e esquecemos o “pesar”. Pesar o que no ser humano é denso, terreno. Levar em conta o pesadume da vida, seu peso, talvez seja isso mesmo o que permitirá apreciá-la: saber lhe dar o seu justo valor[3].

Nesta afirmação M. Maffesoli faz ao mesmo tempo uma crítica e uma proposta. Ele denuncia o estreitamento da razão judicativa e, propõe a integração da atividade racional à dinâmica da vida. O ser não se reduz ao pensamento. Antes, o vitalismo requer inteireza do homem. “Seus respiros e suspiros. Seu ventre também. Não há intencionalidade, reconhecida ou não, sem uma espécie de gozo do mundo tal como é, com suas obrigações, suas limitações, seus arraigamentos, sem esquecer suas aberturas, suas tomadas de perspectivas e sua múltiplas eflorescências multicoloridas[4]”.

Após esta discussão sobre vitalismo podemos retomar o aprofundamento da perspectiva de racionalidade que tem nele sua base: o raciovitalismo. É preciso constituir uma razão sensível, que seja sensível ao “afeto, ao emocional, ao afetivo, coisas que são da ordem da paixão[5]”. Estas dimensões da vida humana que ao longo da modernidade foram confinadas à vida privada, agora são integradas na formulação de uma hermenêutica que seja capaz de perceber o ser em sua inteireza, tanto como sujeito da experiência da fé, quanto como pessoa inserida na realidade sócio-cultural. Neste sentido, ao desconstruir certa noção hermenêutica, abrir-se-á uma nova forma de incidência política.

A ascensão destes elementos puramente mundanos ao status epistemológico alarga o conceito de racionalidade posto no âmbito da modernidade. Alargamento que faz com que a racionalidade se mova em direção ao chão concreto da vida, ocorrendo desta forma uma mútua iluminação entre razão e vida. Isto é de verdade uma expansão da consciência que o homem tem de si e de suas múltiplas relações.

Uma racionalidade orgânica – aberta e integradora –, como expressão de uma razão ampliada, deve estabelecer uma relação conseqüente no processo de conhecimento. Conseqüente, sobretudo, porque seu pressuposto é que “existe uma estreita ligação entre um conceito e a vida que o exprime[6]”. O holismo dessa racionalidade exige uma aproximação que o leve em conta ao longo de todo o desenvolvimento epistemológico, bem como de sua expressão política. Está claro que a relação sujeito/objeto como propôs o cogito cartesiano não dá conta desse holismo, dessa complexidade da realidade.

 

[1] PESSOA, Fernando. O guardador de rebanhos XLVI. In. Poesia completa de Alberto Caeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 72-73.

[2] MAFFESOLI, Michel, O ritmo da vida: variações sobre o imaginário pós-moderno. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 28.

[3] MAFFESOLI, Michel. O instante eterno. O retorno do trágico nas sociedades pós-modernas. São Paulo: Zouk, 2003. p. 135.

[4] Ibid.

[5] MAFFESOLI, Michel. Elogio da razão sensível. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 2005. p. 53.

[6] Ibid., p. 63.

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