Entender a história das religiões de matriz africana no Brasil nos permite compreender melhor o momento presente. O paradoxo de uma sociedade ao mesmo tempo plural e intolerante. Uma sociedade calcada nas garantias conferidas pela Constituição promulgada em 1988 –que se pretende laica e tutela a liberdade de cresça– e ainda assim constitui-se como uma sociedade preconceituosa, onde vigora a disseminação do discurso de ódio e intolerância.
Podemos apontar várias passagens em que nota o quanto o processo escravista, África até Brasil colonial, foi um processo desumano de desqualificação, no qual pessoas eram tratadas como “semoventes”. O que, no atual código civil brasileiro de 2015, refere-se ao tratamento dado a animais, como os de estimação, e criações diversas, como gado, cavalo e afins.¹
Os escravizados eram cargas valiosas, que se amontoavam no Cais de Valongo –e de tantos outros que se criaram ao longo da costa brasileira.²
Essas pessoas não tinham direitos definidos e estavam sujeitas a métodos orientados à desqualificação da sua dignidade. A título de exemplo, alocar escravos de tribos diferentes –que não conseguiam se comunicar– juntos na mesma senzala, reduzindo, assim, o risco de se organizarem para eventual fuga; uso da força de trabalho por muitas horas, a fim de que ficassem tão cansados ao ponto de não conseguissem ter energia suficiente para motins; a separação de entes da mesma família, para que não se organizassem contra seus donos; a expropriação da sua religião, a assim que chegavam nos locais de desembarque, passavam pelo processo de batismo católico, também os seus nomes tribais eram trocados por nomes portugueses. Isso sem falar nas atrocidades realizadas como castigo por mau comportamento: chicotadas, aprisionamento em troncos, grilhões pesadíssimos, presilhas de pé, mão e pescoço. Nesse contexto, desembarcaram e passaram por esse processo mais de 4 milhões de pessoas na costa brasileira. Um momento histórico hoje reconhecido como crime contra a humanidade conforme as Nações Unidas.³
O longo processo de 388 anos de escravidão legal resultou em modificações extremas na vida de cada pessoa trazida de África para o Brasil. Inevitavelmente, elementos característicos da vida social, cultural e religiosa de origem foram, ao longo do tempo, perdendo-se sistematicamente. Dessa forma, temos que analisar as caraterísticas religiosas dos escravizados, pois, mesmo sem a possibilidades mínimas de culto e liberdade de crença, conseguiram perpetuar o legado cultural, social e religioso.
A religião de matriz africana não foi criada no Brasil, pois, na concepção afro diaspórica, não é religião, e sim um sistema sociocultural, no qual a pessoa se insere a partir do nascimento, caracterizado por “momentos de passagem”: o nascimento, a adolescência, o casamento e a morte.
Devido às condições de existência, em que as pessoas sujeitas à escravização não podiam manter suas formas sociais e culturais, estas começaram a conservar seus legado sociocultural como se religião fosse, porém de forma escondida, pois o Brasil era colônia da Coroa de Portugal e estava sob a tutela da religião Católica.⁴
Essa concepção de religião encontrou guarida entre os escravizados no Brasil. Em grande medida, em razão da necessidade de preservação de elementos fundamentais da sua cultura, como o culto aos ancestral. Já que, para continuidade da vida, era fundamental aos africanos escravizados a manutenção do diálogo com aqueles que já partiram da vida terrena. Desse modo os vivos poderiam se manter ordenados, sendo orientado pelos seus ancestrais para poder superar as dificuldades da vida, das colheitas, familiares e sociais.
Ao longo das modificações da sociedade brasileira, podemos observar que em nenhuma legislação ao longo da história após a abolição foi realizada a favor dos escravizados. Note-se, a abolição da escravidão foi promulgada em 13 de maio de 1888, após 388 anos de escravidão. Em 1890 Marechal Deodoro da Fonseca, primeiro presidente do Brasil, edita decreto n.º 119-A- 5, por meio do qual proibia as autoridades estaduais ou federais de expedirem leis que instituíssem religiões nos estados-membros, e institui a liberdade a todas as confissões religiosas a exercerem seu culto e não serem contrariados em atos particulares ou públicos.
Tem importante significado tal comando normativo, mas não podemos nos furtar ao pensamento crítico, não foi uma legislação para aderir às populações negras, mas, sim, um comando de reciprocidade do governo brasileiro para que os imigrantes italianos, japoneses, alemães e árabes desembarcassem no Brasil.
O Brasil deixa o processo escravista e declina direitos para que a acolhida de imigrantes. Gente oriunda de diversos países, muitos não católicos, um percentual importante de protestantes e outras denominações religiosas. A preocupação era de que não fossem tolhidos de suas práticas e, assim, amplificando direitos, essa mão de obra pudesse viver e dar continuidade à sua vida sociocultural e religiosa no país.
Em contrapartida, foi também confeccionado código penal de 1890, que possuía em seu Capítulo XIII, o título DOS VADIOS E DAS CAPOEIRAS.
CAPITULO XIII
DOS VADIOS E CAPOEIRAS
Art. 399. Deixar de exercitar profissão, officio, ou qualquer mister em que ganhe a vida, não possuindo meios de subsistencia e domicilio certo em que habite; prover a subsistencia por meio de occupação prohibida por lei, ou manifestamente offensiva da moral e dos bons costumes:
Pena – de prisão cellular por quinze a trinta dias.
1º Pela mesma sentença que condemnar o infractor como vadio, ou vagabundo, será elle obrigado a assignar termo de tomar occupação dentro de 15 dias, contados do cumprimento da pena.
2º Os maiores de 14 annos serão recolhidos a estabelecimentos disciplinares industriaes, onde poderão ser conservados até á idade de 21 annos.
402. Fazer nas ruas e praças publicas exercicios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumultos ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal:
Pena – de prisão cellular por dous a seis mezes.
Paragrapho unico. É considerado circumstancia aggravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta.
Aos chefes, ou cabeças, se imporá a pena em dobro.
Art. 403. No caso de reincidencia, será applicada ao capoeira, no gráo maximo, a pena do art. 400.
Paragrapho unico. Si for estrangeiro, será deportado depois de cumprida a pena.⁵
O texto legal criminalizava aqueles que se encontravam sem trabalho e aqueles que praticavam ou se organizavam para a prática de capoeira. Uma luta configurada pelos escravizados, que ensina – além da luta – modo de vida e organização, uma tecnologia ancestral codificada para lembrança e manutenção sociocultural do povo negro.
Essa amostragem aqui realizada compõem um complexo sistema de apagamento não só da religião, mas dos povos africanos que aqui desembarcaram. Uma das poucas demonstrações de capacidade desse sistema é a religião, que durante todo período escravista conseguiu se manter via transmissão oral. Sistema esse muito complexo, politeísta, que pega a pessoa negra a margem de uma sociedade e diz a essa pessoa você vem de um sistema ancestral, aquele ancestral mais importante que veio à terra e sedimentou esforços em um corpo físico e que em algum momento se tornou orixá; é um rei, é uma rainha, uma guerreira, um ser de poderes sobre a água, a chuva, o vento e o mar.⁶
Essas conexões com o sagrado transformam as pessoas em seres que dignificam o seu interior e possuem uma grande e complexa capacidade de manutenção desses saberes.
A terra é divina e nós convivemos e dialogamos com ela. Assim como os povos indígenas, povos de matriz africana também passam seus saberes pela continuidade ancestral, desse modo possuem uma grande capacidade de dialogar com a natureza e o mundo. É notório que todo esse processo é divino e que entendem que possuem o divino dentro de si.
Os povos tradicionais de terreiro em todos os aspectos possuem uma leitura diferente das concepções moral, espiritual, ética, comportamental, sensorial e todas tantas concepções de passagem de conhecimento e de amplificação mental. Cada um de nós, no seu tempo e com a sua evolução espiritual, capacitamo-nos a ser melhores hoje do que fomos ontem; e ainda melhores amanhã, vivendo em harmonia com o sagrado que existe dentro de nós e o sagrado que existe no mundo e como dialogamos com ele.
O Brasil tornou os escravizados livres, mas sem nenhuma garantia, tornou um país que desqualifica o povo negro e toda a cultura e religião que vêm deste povo.
Tão necessário falar sobre como originaram atitudes que reverberam ainda hoje. Vemos hoje ataques às religiões de matriz africana de diversas formas: ataques a terreiros, a busto de pessoas importantes para a religião, dirigidos aos orixás, invencionices de outras religiões que continuam a comparar o sagrado dos orixás a poderes do mal e ao profano a partir de concepções religiosas cristãs.
Num país democrático, aqueles que têm mais adeptos religiosos têm mais poder e mais capacidade de consecução de direitos. Por mais que os esforços em tornar povos e comunidades afro-brasileiras em mera lembrança tenha perdurado muitos séculos, não foi possível destruí-las por inteiro. Pois o legado civilizatório possui uma tecnologia muito amplificadora nas cabeças, corpos e modo de vida das pessoas que a praticam essa religião. A capacidade de entendimento não é simplória, operamos com aprendizado diário, não atuamos a partir do proselitismo, pois necessariamente somos escolha dos ancestrais e não ao contrário.
As religiões de matriz africana continuam e continuarão, enquanto o amor tocar nos nossos corações, por nossos ancestrais e por tudo que eles aguentaram.
Um axé ao povo de axé.
Isabela Cristine Dario, nome ancestral Bandjalé
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¹ Lei n° 556, de 25 de junho de 1850. Art. 273 – Podem dar-se em penhor bens móveis, mercadorias e quaisquer outros efeitos, títulos da Dívida Pública, ações de companhias ou empresas e em geral quaisquer papéis de crédito negociáveis em comércio. Não podem, porém, dar-se em penhor comercial escravos, nem semoventes. Fonte: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim556.htm / Lei n°13.105, de 16 de março de 2015. Subseção VIII. Da Penhora de Empresa, de Outros Estabelecimentos e de Semoventes. Art. 862. Quando a penhora recair em estabelecimento comercial, industrial ou agrícola, bem como em semoventes, plantações ou edifícios em construção, o juiz nomeará administrador-depositário, determinando-lhe que apresente em 10 (dez) dias o plano de administração. Fonte: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm
² Fonte – http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/1605/ – Cais do Valongo – Rio de Janeiro (RJ)
³ Fonte- https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/memoria-e-verdade-da-escravidao
⁴ As relações entre Igreja Católica e Estado foram estreitas no Brasil tanto na colônia quanto no Império, pois, além de garantir a disciplina social dentro de certos limites, a igreja também executava tarefas administrativas que hoje são atribuições do Estado, como o registro de nascimentos, mortes e casamentos. Contribuiu ainda a Igreja com a manutenção de hospitais, principalmente as Santas Casas. Em contrapartida, o Estado nomeava bispos e párocos, além de conceder licenças à construção de novas igrejas. Veja mais sobre “A Igreja Católica no Brasil” em: https://brasilescola.uol.com.br/historiab/igreja-catolica-no-brasil.htm
⁵ Fonte – https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d847.htm.
⁶ Senadonoticias (2019). Há 131 anos, senadores aprovavam o fim da escravidão no Brasil. Fuente: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/05/13/ha-131-anos-senadores-aprovavam-o-fim-da-escravidao-no-brasil#:~:text=Por%20388%20anos%20o%20Brasil,for%C3%A7a%20motriz%20dessas%20atividades%20econ%C3%B4micas. DECRETO Nº 119-A, DE 7 DE JANEIRO DE 1890. Fuente: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d119-a.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%20119%2DA%2C%20DE%207%20DE%20JANEIRO%20DE%201890.&text=Prohibe%20a%20interven%C3%A7%C3%A3o%20da%20autoridade,padroado%20e%20estabelece%20outras%20providencias.
Crédito: @casaninjabahia