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Liberdade e blasfémia: Uma das equações mais complexas da contemporaneidade

By 2018-05-20marzo 17th, 2023No Comments

As últimas décadas foram ricas em situações que colocaram grupos religiosos em choque uns com os outros, ou em altercações com grupos de ateus militantes. Regra geral, e no caso das mais “vistosas”, com reações mais exuberantes e com represálias mais violentas, o confronto deu-se através de uma leitura de afronta realizada por alguns meios islâmicos. Mas o horizonte católico e cristão também não ficou imune, com a figura do Cristo, do crucifixo e do Papa a serem alvo frequente de cartoons e de outras formas de expressão artística que levaram a patamares de leitura muito distantes dos oficiais, consensuais, cómodas e integradas nas narrativas religiosas.

Seria longa a listagem destes eventos. Martin Scorsese e a sua Última Tentação de Cristo de 1988, assim como Salman Rushdie e os seus Versículos Satânicos de 1989, teriam lugar às primeiras linhas nessa listagem cronológica mais mediatizada e mais próxima de nós, onde se seguiriam muitos outros textos, esculturas, performances, filmes, pinturas ou canções, entre outros, que viram cair sobre si a dura crítica religiosa ou mesmo a condenação, não apenas em forma moral, mas também em atos e violência como aquele a que assistimos com o atque terrorista em Paris aos escritório do jornal satírico Charlie Hebdo.

Para olhar para este fenómeno, interessa que adotemos dois campos de visão, com duas perspetivas diferentes, mas complementares. Artistas “ocidentais” ou ocidentalizados versus comunidades e líderes religiosos. Uns usam dos direitos que a ideia de Liberdade lhes possibilita, outros advogam que a ofensa perpetrada feriu os símbolos, os locais ou indivíduos, justificando dessa forma os atos de justiça e vingança levados a cabo, seja a simples censura pública e repúdio, seja, mesmo, o incitamento à violência e o pedido da morte para quem a realizou.

O artista coloca-se num lugar de interpretação individual de um dos pilares da nossa cultura laicizada, em que a Liberdade possibilita a criação artística, mesmo quando ela choca com as instituições vigentes, sejam elas religiosas ou civis. No fundo, através de formas que chocam com o instituído, a arte cria narrativas que subvertem o normal uso dos símbolos, pretendendo despertar as consciências, criticar, colocar a nu determinados aspetos inusitados, ou mesmo desconstruir a realidade religiosa.

O limite é, do ponto de vista religioso, a blasfémia, enquadrada na prática da conceção da Liberdade, em que todo o indivíduo tem o direito à ofensa, arcando depois com as consequências que legalmente o Estado defina com base na interpretação do texto da Carta dos Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), em que se diz que a liberdade de cada um termina quando choca com os direitos dos restantes[1].

Do lado religioso, a visão é diametralmente oposta. O crente tem o dever de defender a sua fé, o seu deus e a sua religião. E tem esse dever, não apenas porque muitas vezes os Textos Sagrados assim o indicam (regra geral, de forma indireta e nada consensual), como o faz porque, para si, não há distinção entre sagrado e profano, entre os que, realmente, estão na sua religião, e os que não estão. Tudo é sagrado.

E esta é a base da intolerância entre a grande parte das religiões monoteístas: o universo é o seu objetivo. Chegar a todos é a sua vocação, não apenas por um sentido de missão que implica crescimento -levar da mensagem e da salvação a cada vez mais pessoas-, mas porque, para os monoteísmos, tudo e todos advêm de uma única e irrepetível criação divina, a ela estão submetidos e a ela devem submissão, sejam crentes ou não.

Sendo o seu deus o único no espectro do divino -portanto Deus, e não deus-, e sendo Ele Criador de todas as criaturas, o castigo pela ofensa é global e não apenas parcelar, cirúrgico. Com a ofensa a um Deus Único, não se ofende simplesmente uma criatura, mas toda a organização do universo e todo um equilíbrio cósmico.

E neste ponto reside o porquê de toda a reação altamente empolgada, da escala e da justificação para a violência, mas reside, também, a incapacidade de olhar para o dito “ocidente” e perceber que os Estados deixaram de ser teocráticos, pelo que o seu papel e a sua capacidade de proibir estas expressões blasfemantes é totalmente inexistente. A ideia de Liberdade subjacente ao próprio Estado não deixa, sequer, a possibilidade desse controle ter lugar.

Hoje em dia, o tal ocidente e, em especial, os EUA, recolhem em si duas dimensões altamente explosivas neste quadro. Por um lado, os Estados ocidentais, mesmo os que fazem constar no texto constitucional uma filiação religiosa, nada podem fazer para impedir que os seus cidadãos usem da capacidade de blasfemar. Por outro, eles materializaram a já referida alteração como que cósmica, ao intervirem de forma sistemática na gestão dos interesses locais e regionais. De um ponto de vista de uma religiosidade que nós no ocidente já tivemos e que nos era transversal até há poucos séculos, a ação ocidental materializa e prova essa dimensão demoníaca.

Estamos em patamares diferentes de relação com a noção de Estado e com a ideia de Liberdade. Diferenças estas que se acentuam a cada ato que ocorre, que se agudizam em cada intervenção militar malsucedida. Há que parar esta escalada, por risco de se perder o que temos em comum e de apenas ficar o que nos distancia.

 

Paulo Mendes Pinto

Coordenador da área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona (Lisboa, Portugal)

 

[1] Art. 4.º A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela lei.

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