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Por Humberto Ramos

 

Em que o futebol se parece com Deus? Na devoção que desperta em muitos crentes e na desconfiança que desperta em muitos intelectuais. 

Eduardo Galeano.

 

Das coisas mais absurdas que já ouvi na vida, uma delas ocupa (talvez) o topo das que menos fazem sentido. Trata-se do dito popular “futebol, política e religião não se discutem”. Cresci ouvindo isso. Nunca concordei, afinal sempre vinha da boca dos isentões, de gente que não queria tomar partido ou desagradar ou romper relações por conta de discussões. Acontece que, no Brasil, o futebol é algo tão popular e relevante que as rodas de discussão que outrora só ocorriam nos bares se transferiram para os canais de televisão. Na tevê aberta ou fechada, elas estão presentes. E tem de tudo! Desde programas com gente mais refinada e culta, debatendo tecnicamente e até politicamente os eventos futebolísticos, como discussões genuinamente vulgares. Vulgares no sentido de plebe, de ordinário, que se refere a gente comum, ao populacho, como afirmariam os dicionários.  Estas, evidentemente, são as melhores, pois contam com a visceralidade dos comentaristas, que nos fazem sentir representados. É como se nós, os leigos, estivéssemos lá comentando as peripécias de cada equipe, de cada jogador, manifestando ferozmente nossa indignação com o árbitro da partida ou técnico da nossa própria equipe.

Nelson Rodrigues já havia advertido que “Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola”.  É verdade. Há muito mais em jogo, inclusive religião e política. Para a frustração de quem acredita que religião, política e futebol não se discutem, o esporte preferido dos brasileiros pode reunir todas essas esferas – supostamente separadas – de nossas vidas em um combo fascinante. Aliás, quando foi que futebol e religião estiveram separados no Brasil? A presença dos terços, imagens de santos e as mãos juntas com dedos entrelaçados em sinal de oração entre os torcedores nas arquibancadas são uma constante. Os evangélicos dos Atletas de Cristo, a irmã Mãe de Santo apoiadora e conselheira do multivitorioso técnico Vanderlei Luxenburgo, a profunda devoção do pentacampeão mundial Luis Felipe Scolari à Nossa Senhora de Caravaggio. E a de Tite (atual técnico da seleção brasileira de futebol masculino) e Cuca (Técnico do Atlético Mineiro) à Nossa Senhora de Aparecida, todos estes exemplos são apenas uma ínfima parcela das demonstrações públicas de fé manifestas no universo do futebol brasileiro.

E quanto à política, o que dizer? Bem, basta lembrar da Democracia Corinthiana e suas manifestações contra a Ditadura Civil-Militar brasileira. Recordemos também do destino de João Saldanha, técnico da seleção brasileira que não se sujeitou à influência do presidente militar Emílio Garrastazu Médici o escrete nacional que disputaria e conquistaria a Copa de 1970. Que dizer de um sem-número de jogadores que sofreram e ainda sofrem ofensas raciais advindas das arquibancadas? Também não podemos nos olvidar das diversas manifestações políticas (e polêmicas) procedentes tanto de jogadores como de torcedores, especialmente em países europeus nas últimas décadas. Neste sentido, podemos nos perguntar: como separar a existência do Barcelona das problemáticas envolvendo o debate sobre a independência da Catalunha? Como desconsiderar a relevância da presença de jogadores negros, descendentes de imigrantes africanos, em seleções oriundas de países com histórico colonialistas, como França ou Inglaterra? E a presença de negros e muçulmanos na seleção alemã? Ora, o futebol, como qualquer outra atividade humana, está sujeito à complexidade inerente à nossa existência e às nossas relações.

Portanto, toda a complexidade que envolve a vida humana e sua sociabilidade é inseparável dos sujeitos individuais. De tal modo que um muçulmano não deixa de sê-lo durante os aproximadamente 90min em que figura como jogador de futebol. Bem como um médico espírita não deixa de sê-lo durante o período diário em que exerce seu ofício. Evidentemente, há quem prefira a discrição quanto às suas crenças e posições políticas, há quem as queira tratar (ocultar) como questões de foro íntimo – ambas as posições me parecem salutares e, em determinados casos, recomendáveis. Mas nem sempre ocorre assim.

E, no futebol brasileiro, que é o pano de fundo desta nossa prosa, especialmente a religião se faz significativamente presente. Já se atribuiu a conquista de uma Copa do Mundo à presença de jogadores evangélicos (1994), já se ostentou camisetas, faixas e bandanas com inscrições do tipo “100% Jesus”, “Jesus loves you” e “I belong to Jesus” e uma infinidade de promessas (votos) foram feitas por técnicos de futebol a santos (especialmente católicos) em troca de vitórias. Em 2009, quando o jogador Kaká, então no Milan, foi contratado pelo Real Madri, sua esposa à época, Carol Celico, relacionou a milionária negociação de transferência à vontade de Deus, que estava conduzindo a família para a capital espanhola a fim de que lá pudesse pregar sua palavra.

E quanto à “pregação da palavra”, os evangélicos de fato se destacam. Nas arquibancadas, até notamos certa diversidade nas manifestações de fé, geralmente vinculadas ao momento da partida e no intuito de ajudar uma das equipes em campo – terços, gestos de sinal da cruz ou patuás, bandeiras com imagens de santos, dentre outros, são comuns –, mas em campo, especialmente no pós-jogo, seja nas entrevistas à beira do gramado, seja nas coletivas de imprensa, a hegemonia é evangélica. Jesus parece ser fundamental especialmente aos goleadores. Como pode ser observado todos os domingos no quadro Gols do Fantástico que, além de mostrar os gols das partidas dominicais, premia o jogador que alcança a marca de três gols na mesma partida com uma música de sua escolha. A música toca enquanto são exibidos os feitos do atleta. O número de jogadores evangélicos é tão expressivo e as bençãos futebolísticas de Jesus tão generosas que, em alguns domingos, devido à quantidade de músicas gospel pedidas, o quadro em questão chega a parecer uma programação religiosa.

Nas últimas semanas, entretanto, um jogador que também faz questão de manifestar publicamente seu pertencimento religioso tem dado outro tom e cores ao espetáculo dos gramados. O Paulinho (21 anos), jogador do Bayer Leverkusen e da seleção brasileira, é mais um dos que entenderam ser oportuno anunciar e celebrar publicamente sua fé. Porém, diferentemente dos demais, não fala de Jesus, Jeová ou Nossa Senhora. O capixaba fala de Exú e Oxóssi. Fala e escreve. Há poucos dias, mais precisamente em 20 de julho, escreveu um relato pessoal no portal The Players Tribune intitulado “Que Exú ilumine o Brasil”. Contente em escrever, mas sabendo que poderia fazer mais, não perdeu a oportunidade de encenar os gestos de seu Orixá ao cravar o quarto gol da seleção brasileira no primeiro jogo do Brasil contra a Alemanha nas Olimpíadas de Tóquio. Candomblecista filho de Oxóssi, Orixá Caçador, Paulinho mimetizou o uso de um arco e flexa.

Em tese, o jogador brasileiro desrespeitou normas da FIFA e do COI, que proíbem qualquer tipo de manifestação política e religiosa por parte dos jogadores em campo. Regras estas criadas em momentos distintos pelas duas instituições, porém em resposta a fatos profundamente relacionados, justamente após eventos em que a seleção brasileira de futebol protagonizou gestos e manifestações religiosas após suas conquistas – o que desagradou a muitos e preocupou outros tantos. Para alguns, como o comentarista esportivo Juca kfouri, tratava-se de marketing religioso e, portanto, deveria ser coibido. Para algumas delegações nacionais europeias, as ações poderiam constituir precedentes a incentivar manifestações semelhantes em suas próprias seleções e clubes, que contam com relevante presença de muçulmanos, o que poderia gerar uma disputa religiosa interna (sabemos bem como a questão muçulmana é tratada em boa parte da Europa).

É possível que teor da comemoração de Paulinho, entretanto, sequer tenha sido notada como uma referência religiosa, inclusive pelos membros da FIFA e do COI, uma vez que se trata de um gesto simbólico referente a uma religião minoritária e que, devido ao forte preconceito racial pelo qual passou e passa, não conta com tantas confissões públicas de pertencimento vindas de personalidades afamadas, com exceção do mundo artístico (especialmente o musical). O referido jogador brasileiro, entretanto, tem se esforçado para que sua identidade religiosa não passe despercebida. Em suas entrevistas de imprensa e em seu perfil nas redes sociais, sua postura é a mesma. É evidente que Paulinho, que também se posiciona abertamente contra o governo Bolsonaro, quer trazer à tona os temas como desigualdade social e racismo. Deixa claro que compreende o caráter político de suas manifestações. Talvez tenha compreendido mais do que isto: a proeminência dos jogadores de futebol num país como o Brasil. Em outras palavras, a imensa potência e o alcance que sua imagem como celebridade esportiva.

Deixemos para depois as regras das entidades que mandam no futebol e nos jogos olímpicos, até porque nossos craques são especialistas em burlá-las. Como sabemos, poucas coisas estão tão presentes no futebol quanto os palavrões raivosos direcionados aos árbitros e as manifestações religiosas. Importante mesmo é voltarmos nosso olhar para o fenômeno a fim de compreender sua relevância. Poderíamos destacar alguns pontos importantes: primeiro, a atitude de Paulinho é bastante semelhante às manifestações de seus colegas evangélicos, no sentido de que repete a mesma fórmula (o anúncio e celebração de sua crença após um êxito em campo, geralmente um gol, o qual atribuí à sua fé). Dessa forma, podemos dizer que os evangélicos abriram as portas para tais expressões, sedimentaram um caminho pelo qual certamente muitos outros jogadores irão publicizar suas convicções religiosas; segundo, tal iniciativa é profundamente importante exatamente pelo fato de constituir-se uma excepcionalidade em duas perspectivas: tanto pelo fato de haver uma hegemonia cristã – especialmente evangélica – nas manifestações religiosas no mundo do futebol quanto pelo fato, já mencionado aqui antes, de se tratar de uma religião minoritária e que ainda hoje padece dos males do racismo que se encontra impregnado em nossa sociedade.

Quando digo que os jogadores evangélicos abriram as portas para tais expressões, não me refiro às celebrações que encerram alguma mensagem emitida pelos atletas especificamente. Elas sempre existiram e, evidentemente, não se restringem ao mundo do futebol. Em todas as modalidades esportivas há registro de comemorações que suscitam discussões que ultrapassam as questões meramente esportivas. As manifestações religiosas dos evangélicos no mundo da bola, em boa medida, refletem outro aspecto envolvendo este grupo religioso. Precisamente, o seu crescimento numérico bem como o de sua relevância sócio-política. Um grupo social que passou de minoria sujeita aos preconceitos e restrições impostas pelos adeptos da religião então dominante – que durante algum período assumiu características típicas de um apoliticismo escapista – a proeminentes atores sociais e políticos do país.

Diante disso, o que podemos dizer sobre os gestos e declarações públicas do jogador Paulinho? Trata-se de uma posição aparentemente isolada no mundo do futebol e é possível que permaneça assim, que não estimule outros atletas a reivindicar o caráter público de suas confissões religiosas, posicionando-se contra o racismo e a intolerância em diversos âmbitos. Por outro lado, sua atitude certamente é fruto de anos de incidência política dos grupos oprimidos seja junto à sociedade seja junto ao poder público, uma incidência que resultou na criação de políticas públicas nos governos progressistas do Partido dos Trabalhadores. Estas políticas públicas, por sua vez, proporcionaram a execução de projetos de justiça corretiva ou retributiva, bem como formação educacional para uma cultura de tolerância e paz, especialmente pelo ensino de História e Cultura da África e sua relação com nossa própria História.

Enfim, a manifestação do atacante brasileiro não constitui um ato deslocado de um contexto, não surgiu do nada, é parte do legado de mulheres e homens brasileiros que lutam diariamente, sozinhos ou em movimentos populares e partidos, em prol da emancipação humana. E manifestações religiosas deste jovem nos mostram a realidade da sociedade brasileira: ainda que majoritariamente cristã, ainda que a cada dia mais fortemente marcada pela presença evangélica, há vozes dissonantes. A diversidade não pode ser medida pela expressividade numérica de um grupo, etnia, religião e/ou cultura, a diversidade é caracterizada pela existência de diferentes grupos, etnias, religiões e/ou culturas em uma sociedade. Este jovem jogador e sua crença são o reflexo de uma sociedade secularizada. Uma secularização distinta daquela pensada por muitos teóricos, que imaginavam que a religião ou perderia sua força ou se restringiria à vida privada. Não! A secularização manifesta em terras tupiniquins é aquela mencionada pelo filósofo Charles Taylor: na qual a religião outrora dominante se torna mais uma dentre várias outras possibilidades (dividindo seu espaço com outras matrizes produtoras de sentido, inclusive não religiosas, como as ideologias políticas e à ciência). No caso do Brasil, reiteramos, a despeito da hegemonia cristã, um sem-número de religiões se apresentam como opções no mercado da fé – bem como a própria ausência dela.

E quanto às regras do futebol? Ora, os jogadores não se furtam em usar a sua criatividade a fim de driblá-las para expressar suas crenças e opiniões. Não importa quais sejam, elas aparecerão de uma forma ou de outra. Importa, na verdade, é construir uma sociedade marcada pela aceitação da diferença para além daquilo que chamamos de tolerância. Uma sociabilidade que, mais do que tolerar, recepciona e fortalece a diferença oferecendo suporte para que expressões distintas da existência se manifestem na sua plenitude sem quaisquer percalços.

Para tanto, resta-nos observar os próximos episódios da novela da vida real, afim de verificar como nossa sociedade irá lidar com possíveis futuras manifestações religiosas de outros jogadores pertencentes a outras religiões. É justo que a porta aberta pelos jogadores evangélicos e utilizada agora por um jogador candomblecista não se converta jamais em um monopólio deste ou daquele grupo. No chamado ocidente temos o costume de pensar na liberdade em termos individuais, quase sempre inclinados a uma espécie de egoísmo que a tudo justifica. Justamente por isso vale lembrar que a igualdade, enquanto valor fundamental, é o que garante a liberdade não para um grupo ou um indivíduo, mas para todas as pessoas.

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