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Por Angelica Tostes[1]

“Sólo le pido a Dios(as/es)
Que la guerra no me sea indiferente
Es un monstruo grande y pisa fuerte
Toda la pobre inocencia de la gente”
Mercedes Sosa

Quando eu estudei na Índia um professor uma vez disse: “O diálogo interfé é mais cabeça do que coração”.  No primeiro momento estranhei tal constatação, já que era envolvida com o diálogo inter-religioso a partir da mística e outras subjetividades. Com o passar do tempo, ainda em Hyderabad, compreendi o significado dessa frase que tanto me incomodou. O diálogo interfé é o movimento das pessoas com fé viva em direção a construção de uma sociedade do bem-viver. Em meio a uma pandemia global, pensar a construção interfé do bem-viver latino-americano parece uma tarefa hercúlea. O conceito “sumak kawsay”, compreendido como bem-viver, teria sua tradução mais apurada, segundo Esperanza Martínez,  como sumak = plenitude; kawsani = viver.  Esse viver em plenitude significa a harmonia entre a vida e suas relações diversas:

Só o fato de nos atrevermos a pensar que a meta é a plenitude e que a plenitude supõe relações de harmonia, não de hostilidade; condições de saúde, não de doença; relações de solidariedade, não de competição, nos leva a repensar a nós mesmos com a natureza e a superar a ideia cultivada na modernidade e santificada pela ciência ocidental (a religião) de que a natureza é algo hostil, que devemos dominar para sobreviver, e que aqueles que sobreviverão sempre serão os mais fortes. (MARTÍNEZ, 2010)

E para pensar o diálogo inferé latino-americano requer a compreensão de nossa história. A América Latina deve ser entendida não apenas como um espaço geográfico, mas antes como um território sociopolítico, cultural e epistêmico forjado pelo colonialismo, no contexto da diferença colonial, vivendo em uma tensão do colonialismo, mas com um potencial de decolonização.  Essa tensão se faz pela herança do colonialismo, conhecia como o conceito de  colonialidade, que não é estagnada no tempo e no espaço colonial, mas é sobre todo o processo que ocorreu após as grandes navegações e mudanças do capitalismo, juntamente com a racialização da humanidade, a criação do Estado-Nação, a ascensão da racionalidade universal e única, bem como a escalada das hierarquias de subjetividades. Neste último ponto, quero enfatizar que as formas de colonialidade podem ser encontradas em tudo o que existe na humanidade, porque a colonialidade é um sistema de hierarquia de conhecimento, linguagem, conceitos religiosos, autoridade, educação, gênero e sexualidade, raça e racismo.

O CoronaChoque, “termo que se refere à forma como um vírus atingiu o mundo com uma força avassaladora e como a ordem social do Estado burguês” (Vijay Prashad, Du Xiaojun; Weiyan Zhu, 2020, p.3), deixou mais evidente as desigualdades na América Latina. A pobreza bate às portas das periferias, além das múltiplas camadas de violência já impostas, seja pela mão do Estado ou da exploração fundamentalista do cristianismo. Fome, desespero, violência de gênero, racismo. Tudo isso de maneira aprofundada, criando abismos de classe quase que intransponíveis. O fundamentalismo religioso tem sido grande aliado a formas de dominação do Estado capitalista em exploração desses corpos subalternizados, manipulando-os com promessas de cura ou minimizando o COVID-19, na insistência de manter celebrações normalmente.

Os enfrentamentos interfé tem sido construído nas ruas, com máscaras e ações de solidariedade. Em São Paulo, religiosos e religiosas de diversas tradições tem se unido para a doação de kits de higiene e alimentação para pessoas em situação de rua. Umbandistas, candomblecistas, católicxs, muçulmanxs, evangélicxs tem construído isso juntos e juntas, como o padre Júlio Lancelotti disse: “é o encontro de pessoas que querem humanizar a vida”. Além das ações de solidariedade, no mês de maio, a comunidade interfé latino-americana se uniu virtualmente em uma Jornada Latinoamericana Interreligiosa de Oración, que foi apoiada por instituições religiosas e organizações baseadas na fé como o GEMRIP. O encontro reuniu 25 pessoas de diversas tradições que partilharam uma palavra de acolhida, conforto esperança de acordo com sua fé, mas também foram vozes de denúncias as inúmeras injustiças que temos sofrido nesses últimos tempos. Com alegria pude participar desse encontro com companheirxs latinxs, partilhando a fé e luta para a construção de uma fé encarnada no corpo.

Em um país a qual o presidente de Estado diz “e daí?” para as inúmeras mortes em decorrência ao coronavírus, os processos de desumanização seguem como a construção de um projeto político genocida. As pessoas de espiritualidade viva e instituições baseadas na fé necessitam compreender sua vocação sócio-política de ações e posicionamentos contra as políticas de morte instauradas, não apenas no Brasil, mas em toda América Latina.  A ação a partir do diálogo intefé é a de decolonização com propostas efetivas para contribuir com a experiência na vida cotidiana e na luta, onde a fé é mais do que discussões teológicas elevadas e mais sobre dar sentido à vida, encontrar forças para enfrentam injustiça, pobreza, racismo, machismo e as consequências da colonização.

O papel do diálogo interfé é abrir os caminhos para compreensões outras de religiosidades, disputar narrativas e criar a cumplicidade a partir de lutas concretas. Em território de Abya Yala o diálogo interfé não deve apenas ser feito com os focos academicistas dos textos e da hetero-branquitude, por isso não usamos aqui o termo “diálogo inter-religioso”. Compreendemos que o diálogo interfé é o encontro de pessoas com uma fé viva dialogando. A expressão “interfé” se dá de maneira mais ampla, pois indica “que as conversações e interações estão acontecendo entre pessoas que pertencem a credos, e não entre religiões em si, entre religiões como sistemas de crenças e práticas” (Kwok Pui Lan, 2015, p. 21).

Meu professor tinha razão, de fato, o diálogo interfé precisa ser mais concreto, “mais cabeça”. Porém, sem o coração não há o sangue que flui para a cabeça, sem o coração não há pulsão de vida, não há o pensar! Que o coração pulse e a mente planeje ações para a construção do Bem-Viver. Que os corpos se unam uns aos outros, e compreendam que a dor do meu próximo é também a minha dor. A pandemia não pode desumanizar e desarticular nossa fé crítica e prática social. A harmonia tão desejada não será oferecida a nós, ela será construída com base nas lutas sociais nos cotidianos de sobrevivência. Apenas dessa maneira será possível experimentar a dinâmica do diálogo interfé em plenitude, em Bem-Viver: no meio do povo e para o povo.

Abaixo a Declaração Inter-Religiosa construída coletivamente a partir da Jornada Latinoamericana Interreligiosa de Oración (2020):

  • Como comunidades de distintos caminos y tradiciones, afirmamos que nuestras creencias no son antagónicas sino una bendición para el trabajo conjunto.
  • Creemos que solo caminando juntxs, reconociéndonos en las demás personas y en la Creación, podremos hacer de este un mundo sororo, solidario, sostenible y sustentable.
  • Creemos que en la familia humana, nuestras diversidades 13 son riquezas para alcanzar un mundo de paz, justicia, equidad, solidaridad y amor.
  • Creemos en un mensaje de fe integral, diverso e incluyente.
  • Creemos que somos parte de una comunidad de fe que es también nuestra familia y buscamos reconocer los dones de cada unx mientras celebramos las alegrías de lxs demás como propias.
  • Creemos que la práctica del amor, que dignifica la vida en sus diversas formas, es el impulso de Dios para engrandecer la vida de todas las personas, las criaturas y el medio ambiente.
  • Creemos que el amor se manifiesta de muchas maneras y denunciamos que nadie tiene el derecho de limitar, restringir o prohibir el modo en que otras personas aman o a quienes aman.
  • Creemos que el odio nunca cesa por el odio. Solo por amor se curará el odio.
  • Creemos en la fuerza del amor que actúa con convicción en la mano que acaricia, en los ojos que ven más allá, en la capacidad de escuchar el dolor que grita en silencio y en el abrazo tierno que acoge.
  • Creemos que la espiritualidad está enraizada en las experiencias de todxs lxs cuerpxs y pedimos el fin de la opresión sobre ellxs.
  • Creemos que nuestrxs cuerpxs diversxs son el mayor acto político de resistencia; que ser, hacer y decidir sobre ellxs nos corresponde solo a nosotrxs, y que su disfrute y placer no debe estar determinado por las creencias de otrxs, nos negamos a que se nos impongan formas determinadas de vivirlxs, de habitarlxs en formas que laceran nuestra dignidad humana en nombre de algún Dios, religión o espiritualidad.
  • Creemos en la dignidad de todas las personas, incluida su salud, a través del acceso al cuidado y atención de sus cuerpxs, bienestar psicológico y medicinas.
  • Creemos que la fe se demuestra en actos beneficiosos para todas las personas sin importar a quien, tanto en épocas de abundancia como en las de dificultades.
  • Creemos en el derecho a una vida mejor, de bienestar y felicidad para ser así de bendición a nuestras comunidades.
  • Creemos en el derecho universal de igualdad y oportunidades al acceso de vocaciones, liderazgos y ministerios de todas las mujeres, siendo estas cis y trans, y de negros y negras
  • Creemos que nuestra misión es proveer apoyo a toda la comunidad y, especialmente, abogar por los derechos de las personas LGBTIQ+ y comunidad negra debido a esta importante verdad: Todxs somos creadxs a la imagen de Dios.
  • Creemos en el “buen vivir” para todas las personas con derechos y en plenitud.
  • Creemos en la justicia social como manera de habitar la tierra en paz y armonía, donde no haya sufrimiento, hambre, falta de abrigo y protección.
  • Afirmamos nuestro compromiso de seguir caminando juntxs por la suma de voluntades, la suma de dones y talentos para que nuestras manos y voces lleven el amor de la Divinidad que sana todo con su amor sin fin. Amén, Amin, Ashe,

Aum, Om, Hum, Que así sea

Referências:

PRASHAD, Vijay; DU, Xiaojun; WEIYAN, Zhu. A China e o CoronaChoque. Art. no 1 Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Abril de 2020. Disponível em <  https://www.thetricontinental.org/pt-pt/estudos-2-coronavirus/ > Acesso em < 03 de jun de 2020 >

MARTÍNEZ, Esperanza. Sumak kawsay. Nem melhor, nem bem: viver em plenitude. IHU, 2010. Disponível em < http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/34622-sumak-kawsay-nem-melhor-nem-bem-viver-em-plenitude-entrevista-especial-com-esperanza-martinez- > Acesso em < 03 de jun de 2020 >

Jornada Latinoamericana Interreligiosa de Oración. Programa de la Celebración Interreligiosa. 24 de maio de 2020.

KWOK, Pui-Lan. Globalização, gênero e construção da paz: o futuro do diálogo interfé. São Paulo: Paulus, 2015.

Líderes religiosos unem esforços para ajudar população de rua de SP diante da Covid-19. Agora Folha. Disponível em < https://agora.folha.uol.com.br/sao-paulo/2020/05/lideres-religiosos-unem-esforcos-para-ajudar-populacao-de-rua-de-sp-diante-da-covid-19.shtml > Acesso em < 03 de jun de 2020 >

[1] Angelica Tostes é teóloga feminista, mestra em Ciências da Religião, ativista interfé e pesquisadora do Tricontinental: Institute for Social Research.

 

Foto: Artwork (mural) by Eduardo Kobra
Instagram : @kobrastreetart
Facebook : Eduardo Kobra
Web : eduardokobra.com

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